Ivam da Silva
Ivam tinha uma maneira única de olhar para as alegrias e tristezas da vida. Perdeu o pai, José, com apenas nove e foi criado com quatro irmãos entre muitas dificuldades por Dona Dadinha. Na época mesmo passou trabalhar, vendia bala no circo, engraxava sapatos e levava e buscava roupas na tinturaria com o irmão Everaldo. Por trás da névoa das agruras, a imagem que se revela daqueles tempos era para ele feliz.
Porque acreditava impossível apagar a alegria dos bons momentos na dureza da realidade. Entre os diferentes bicos, ficaram as travessuras de criança e a união da família; do chuveiro defeituoso da casa, uma brincadeira entre eles; do peso das roupas nos pequenos braços subindo a ladeira, uma canção para os futuros filhos; do caprichoso trabalho como engraxate, outra canção para os pequenos. Esses precisaram crescer para entender sozinhos a dimensão mais séria dos relatos lúdicos do pai.
Com Dila não houve esse outro lado. O destino dos dois foi literalmente traçado na maternidade, como cantava Cazuza: nasceram com apenas um dia de diferença no mesmo local e dividiram o mesmo quarto ainda bebês. Apesar de também morarem próximos um do outro - ela inclusive acostumara-se a estender a mão para dentro do muro dele para colher jabuticabas - só foram se reconhecer aos 18.
Foi em um show da banda dele, um cover de Beatles chamada Beatos. Ivam se lembra da tremedeira dos pés à cabeça: sabia ter encontrado alguém especial. Vencida a timidez de lado a lado e a rotina intensa de trabalho de ambos, um longo namoro de oito anos tornou-se casamento de 42. Nascidos um para o outro seguiram apaixonados pelo resto da vida.
Tiveram três filhos: Livian, Ivan e Alan. Foi um pai presente, apesar da correria de dono de comércios. O empreendimento mais recente, uma loja de instrumentos musicais, era um sonho que mobilizou a todos na casa. Dila chegara a trabalhar por muitos anos na Olivetti, mas depois da primeira gravidez passou a cuidar das crianças e da casa.
A filha Livian guarda uma memória querida do pai e daqueles tempos. Por conta da rotina do trabalho, Ivam chegava muito tarde e não conseguia estar com ela. Então pediu-lhe que escrevesse em um caderno como fora o dia - ele lia e fazia comentários. Assim, encontrou uma maneira de se fazer presente quando o tempo não permitia. Apesar da facilidade na expressão do amor, sabia ser rígido com os filhos. Na maioria das vezes bastava um olhar.
A vida de Ivam foi marcada pelo amor ao trabalho, especialmente à loja de música. Mas tinha outras paixões. A guitarra, nunca abandonada e sempre revisitada, seus escritos e os desenhos, os sonhos e planos para a amada casa em Mairiporã, local de tantas reuniões da família. E, claro, o neto Enzo, único capaz de fazê-lo deixar o trabalho em segundo plano. Henri, o segundo e recém-chegado neto, já movimentava seu ânimo e imaginação.
A vida estava em ordem, cada coisa no seu lugar, quando chegou ao fim. Rumara para Mairiporã na noite de segunda de Carnaval depois de ter trabalhado três dias seguidos. Jantou, fez palavras cruzadas, foi dormir feliz. Na manhã dia seguinte um infarto fulminante o levou. Ivam partiu sem aviso prévio, despedida ou sofrimento, da noite pro dia. Enquanto esteve aqui soube como poucos transformar sua caminhada em algo belo.