Heitor Lucas da Silva

 
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Seu Heitor tinha entre as sobrancelhas, acima do olho esquerdo, uma ruga característica a ponto de ser batizada pela família com seu nome. Refletia a feição sisuda pouco aberta para conversa fiada e ao mesmo tempo a retidão moral pela qual era conhecido e admirado, seu “valor fundamental”.

A “Ruga Seu Heitor” foi passada adiante para os filhos, assim como alguns dos seus ensinamentos: o valor do trabalho, a aversão aos vícios do álcool e do cigarro, o amor à família. Tudo resultado de uma trajetória de labuta. Homem do interior de Minas Gerais, casou-se cedo como era costume, aos 18, com Dona Luzia, jovem de 16. Na roça, plantando café, arroz e outras fontes de sustento, escambo ou, com sorte, venda, começou a formar família. Silva, como tantas outras.

Lá teve seus quatro primeiros filhos. Com a família crescendo, viu a hora de buscar novas oportunidades. Partiu na frente para São Paulo, município de Guarulhos - um cunhado fora antes e havia possibilidade de emprego rápido. O ano, 1962. Esposa e filhos seguiram pouco depois. Vida dura, moradia precária, muitas bocas. E mais três filhos viriam nos anos seguintes. 

Seu ensino primário incompleto não lhe permitiu desvendar muitos dos mistérios desse mundo, mas foi afortunado por conseguir criar e encaminhar com Luiza todos os filhos. Suportou quando preciso a grande dor de perder seu primogênito em um acidente trágico que marca a família ainda hoje. Mas viu crescer sete netos, todos com o grau universitário conseguido primeiro pela caçula, e três bisnetos, fonte inesgotável de alegria.

Para além da “Ruga Seu Heitor”, também sabia sorrir, adorava chapéus e boinas, gostava de sanfona e tratava com muito carinho uma que, há muitos anos, guardava como objeto de devoção. Não tocava. “Muito difícil, não dá“, dizia ele, após arriscar algumas aulinhas depois da aposentadoria como porteiro e segurança de uma metalúrgica. 

O passar dos anos trouxe mais sabedoria e bom humor, e amoleceu o coração do homem sisudo. Agora era dado a piadas nos almoços de domingo, gargalhadas contagiantes ou copiosos choros assistindo propaganda de margarina na TV. Fazia bem a si a casa sempre cheia de filhas, netos, bisnetos e agregados, todo mundo falando junto, contando histórias.

E nessa boa fortuna, Seu Heitor foi chegando à velhice, a impermanência do corpo se fazendo presente, natural em nossa existência – a única certeza. A energia diminuindo, a luz interior se tornando menos intensa. E as doenças da velhice, sempre tratadas e acompanhadas de perto, além da pandemia que prendeu “os dois passarinhos na gaiola”, como dizia Dona Luzia. O tempo é algoz. 

Ele falava que queria morrer dormindo e assim foi naquela manhã de quinta-feira. Tomou o remédio da tireoide, foi ao banheiro, voltou para cama, acendeu a luz do quarto a pedido da esposa, que também levantara. Ela puxou assunto, hábito matinal, ele não respondeu. Ela insistiu, sem resposta. Foi-se, como se embalado novamente pelo sono. Agora é Dona Luzia, filhos, netos e bisnetos que o preservam na memória apesar da dor. O tempo amigo fará sua mágica… um dia.


Foto: Fernando Martins

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