Maria Del Carmen Golan Garcia de Vilarino
Antes de ser a “Espanhola”, dona de mercearia na Penha, zona leste de São Paulo, Maria precisou deixar tudo para trás na terra natal. No navio que a trouxe de La Coruña embarcou seus filhos, Maria e Luciano, para reencontrar o marido, João, e uma vida nova no Brasil. Ele fugira da sangrenta ditadura de Francisco Franco, à qual se opunha. Juntos encontraram paz do outro lado do oceano.
Trabalhou muito tempo em uma indústria de tecelagem, enquanto o marido se valia dos conhecimentos de marcenaria. O empório veio depois, uma iniciativa familiar tocada a oito mãos com a ajuda dos filhos.
Maria era bem humorada e tranquila. Gostava de contar histórias do passado, mas em geral seguia sua natureza mais reservada e menos expansiva. Era meticulosa no cuidado com as suas coisas, tinha tudo arrumado, jeitoso, e organizado na rotina da casa. O almoço era cedo, às 12h, e o jantar servido pontualmente às 18h30.
João gostava disso e dos seus pratos que ecoavam as origens espanholas: tortilha, lentilha e callos, espécie de buchada ibérica, eram algumas das especialidades com gosto de casa. Ambos eram felizes no Brasil; voltar nunca esteve nos planos e mesmo o sotaque só se insinuava ocasionalmente no trato com familiares.
Sempre quis casa própria, desde a vinda da Espanha. Quando o desejo materializou-se, ia até o centro da cidade uma vez por ano para pagar as prestações do financiamento da Caixa Econômica Federal. Quitava os seis meses anteriores e adiantava os seguintes, relações bancárias de outros tempos.
Distraía-se com a televisão, mas também não dispensava um dominó nas reuniões de família. Mudança no jeito mais fechado só com o passar dos anos e com a chegada da idade; nos últimos tempos até se permitia um ou outro palavrão quando não aprovava alguma coisa.
Maria conseguiu visitar sua terra e seus parentes três vezes, duas dela com o marido, e na última passou quatro meses por lá. Aproximando-se dos 100 anos de vida e em plena saúde, a memória começou a alcançar tempos mais e mais distantes. Lembrava em detalhes do trabalho na fábrica, da sua máquina de tecelagem, uma das principais da linha de produção. Lembrava também do cachorrinho Duque, companheiro ainda na Espanha. Conectada à sua trajetória e ao passado, partiu em paz.