João Evangelista Vargas

As vidas de João e de Dormeci estiveram desde os primeiros tempos intrinsecamente ligadas. Irmãos não de sangue, mas de alma, caminharam pela vida de mãos dadas e com o tempo desenvolveram o tipo de comunicação que prescinde de palavras: a língua secreta do coração.

Ainda bebê em Barra, interior da Bahia, foi entregue pela mãe, Jovelina, a um casal sem filhos. Nascera órfão de pai - João Camilo havia morrido antes de seu nascimento - e a mulher não encontrara outra saída para a sobrevivência da sua criança que ser criado por outra família.

Agostinha e Antônio o acolheram como se fora seu e o batizaram. Pouco depois nasceria Dormeci; doravante seriam inseparáveis, criados unidos e assim permanecendo até o fim. João curtia a vida de criança, entre brincadeiras com a irmã e a necessária ajuda aos pais adotivos na lavoura.

Ainda rapaz teve um derrame e a partir dali a vida tomou um desvio para não mais retornar. Aposentado precocemente, passou a morar com Dormeci, que olhava por ele. Mudaram-se para Xique Xique enquanto ela formava a própria família, João a bordo. Viveu com a irmã, o então marido, e os nove filhos que eventualmente tiveram antes da separação.

Desenvolveu sua silenciosa rotina, pontuada pelos cigarros, cafés e remédios. "Não aborrecia ninguém", lembra ela. Comia e andava sozinho; para tomar banho e vestir a roupa contava com o auxílio da sempre presente Dormeci. Apesar do jeito calado, gostava de uma prosa e quando estimulado por um assunto puxado por alguém até conversava muito, revelando uma mente alerta e boa memória.

Viveu 87 anos em paz até ter outro derrame, derradeiro. A irmã, já doente, mudara-se com ele para São Paulo para se tratar e estar com seus filhos. Dormeci sente falta do seu companheiro de rotina, de silêncios, de vida, mas agradece por não tê-lo visto sofrer. "Sinto saudade dele dentro de casa, mas tudo como Deus quer", resigna-se ela, certa do privilégio de ter dividido tanto da própria vida com João.