Guiomar Vitale Calil
O silêncio de Guiomar encontrava na escrita uma válvula de escape, um fio para se desenrolar e um rio para fluir em prosa. Não era de levantar a voz para ninguém ou de responder agressivamente, preferindo na maioria das vezes o silêncio. Mas descrevia os acontecidos em detalhes no papel, sua maneira de extravasar. Os registros íntimos e bem guardados foram encontrados apenas após a sua partida e desvelaram uma janela para o que se passava em sua alma.
Alguns escritos descreviam cenas cotidianas, observações que reservara para si e até alguns arrependimentos. Espetados sob o manto de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, pequenos bilhetes pediam saúde para os seus.
Nascera mesmo para ajudar desde sempre. Ainda menina e pouco depois da vinda da família de Salto para a capital trabalhava em uma tecelagem no Tatuapé para auxiliar nas finanças da casa. Conheceu o marido, Suad, na fila de uma seção eleitoral. Na boa e longa parceria dos dois coube a Guiomar contribuir com seu jeito econômico, costurando para fora e cuidando dos filhos, Enildison e Edilson.
Sempre gostou de estudar e prezava pela educação dos dois meninos. Era ela a tirá-los do futebol para as aulas e a ajudar com as lições. Tinha facilidade para isso e era exigente. Sua irmã, Odete, terminou por casar com o irmão de Suad, Salim. As famílias, ainda mais unidas, eram também vizinhas de muro, vazado por uma passagem. Estavam sempre um na casa do outro, as crianças brincando com os primos Wilerson e Welton. Para completar a simetria Suad e Salim tocavam juntos um bem-sucedido negócio de distribuição de leite e derivados.
A vida de Guiomar não lhe permitiu muitos passatempos. Desde criança cantava para si e para os outros com seus três irmãos, influência do pai, um músico e maestro militar. Carregou esse hábito pela vida, mas foi parando após a partida do marido em meados dos anos 80. Mudou muito a partir dali, e nos momentos de maior saudade de Suad desejou estar com ele novamente.
Dona de uma saúde sólida e de memória prodigiosa aos 95 anos, era geralmente ela que lembrava e avisava a todos das datas de aniversário dos familiares. Teve cinco netos e três bisnetos, com mais um a caminho. Internada após passar mal em casa soube da notícia da gravidez do quinto bisneto. Ficou feliz, desejou saúde à criança, sorriu muito. E assim, celebrando a vida que se renova, partiu horas depois.