José Damião da Silva
José finalmente retornava à sua Guaranhuns natal após dez anos trabalhando em outras cidades e lá encontrou algo inesperado e capaz de mudar sua vida para sempre. Na casa onde cresceu com 23 irmãos, uma formosa jovem de 15 anos, dez a menos que ele. Era Ilda, adotada por seus pais ainda bebê após ser oferecida por uma mãe em desespero por não ter condições financeiras de criá-la.
Quando José despedira-se da cidade, Ilda tinha apenas cinco anos. O seu retorno marcou um momento decisivo para os dois, pois, como haveria de ser, apaixonaram-se no mesmo instante. Esse amor inesperado não foi muito celebrado de início: a família dele os via praticamente como irmãos, a dela desaprovava a união da filha branca com um homem negro.
Os 16 anos de Ilda foram também o início da vida em comum do casal, vencidas as barreiras de lado a lado. Ficariam juntos por 62 anos, até a partida dela, em uma relação com química e beijos cheios de paixão enquanto a saúde permitiu. E nesse período formariam também uma família numerosa, com 16 filhos, além de uma menina adotada.
Quando eram apenas cinco crianças, e mais uma a caminho, decidiu ir para São Paulo atrás de trabalho. A ideia era voltar para buscar a família, mas a demora foi alimentando a fofoca na boca do povo. Ao ouvir que seu marido poderia ter alguém na cidade, Ilda não pensou duas vezes. Com a bebê de seis meses a tiracolo, fez as malas e partiu para o sul sem avisar. As outras crianças ficaram com os avós e iriam depois.
“Se ele tinha mesmo alguém escondeu direitinho porque ela não achou ninguém”, conta Lia, a filha que se mudou para a cidade ainda bebê. A família gostava de rir dessa história, o único questionamento sobre a fidelidade de José. Os filhos mais novos já nasceram na cidade grande, onde a família montou uma pensão. Ilda cuidava do negócio enquanto o marido trabalhava como vigilante noturno.
Foi um pai reservado e de poucas palavras, demonstrando amor aos filhos em pequenos atos e exercendo a autoridade apenas com o olhar. Era grande o contraste com o impulso superprotetor da esposa. Suas regras sobre permanecer na rua não seriam esquecidas pelos filhos tão cedo: “pode ir, mas tem que voltar antes de anoitecer” ou a mais prosaica “vou cuspir no chão e quero você aqui antes de secar”.
Ilda ainda trabalhou como diarista depois do fim da pensão, antes de se aposentar e passar a fazer colchas de retalhos. José, também aposentado, as vendia na rua. Com o tempo livre encontrou na pescaria na lagoa perto de casa sua distração favorita. Assim como espalhar-se na cama, descansando de tudo o que trabalhara. A esposa se foi num sopro, acometida por um câncer aos 76. Ele viveria mais uma década, até os 96.
Passaria os últimos anos mais debilitado. Cego após uma lesão no nervo óptico e com infecções urinárias recorrentes por conta de uma sonda, era acompanhado 24 horas por dia. José descansou enfim e, seguindo os grandes números da tradição familiar, deixou uma família enorme e até difícil de contar. Foram 47 netos, 44 bisnetos e oito tataranetos. Todos frutos do seu amor.